O ser grotesco agora apodrecia sobre ela, sua carne tornando-se cada vez mais pútrida. Ana se alimentava lentamente, for?ando-se a engolir pequenas por??es da criatura em decomposi??o. O gosto era repulsivo, e o cheiro cada vez mais insuportável, mas ela sabia que essa era sua única chance de sobrevivência.
Seu est?mago, atrofiado pela fome prolongada, mal aceitava a comida. Ondas de náusea a sacudiam, o corpo protestando a cada mordida. Mas Ana persistiu, ignorando os espasmos de dor e os impulsos de vomitar. Sabia que precisava consumir a carne, independentemente do sofrimento. Cada peda?o engolido era uma luta contra o próprio corpo, mas também uma demonstra??o de sua determina??o de viver.
— Como pude deixar chegar a isso? — perguntou repetidamente. A culpa pela fraqueza a consumia enquanto sua voz ecoava no abismo.
Suas palavras saíam primeiro como murmúrios, mas logo gritos roucos se fundiam com o ambiente. O fortalecimento de seu corpo acompanhava a chegada do limiar final entre a sanidade e a loucura, uma tênue linha que amea?ava sumir com a mais leve brisa. As vozes em sua mente se tornavam mais insistentes, mais acusatórias.
— Você é uma fracassada, uma tola. Olhe para você.
— Foda-se! — Ana discutia com o nada como se fossem entidades reais, respondendo a acusa??es imaginárias com fúria e desespero. — Eu ainda estou viva, desgra?ados! Ainda estou aqui!
A escurid?o ao seu redor parecia se fechar mais, e invisíveis formas distorcidas e grotescas dan?avam na periferia de sua vis?o. Ana sentia a press?o crescente na cabe?a, uma dor latejante que amea?ava estourar seu cranio. Mas, mesmo assim, ela continuava a gritar, a lutar contra os fantasmas que sua mente faminta e delirante conjurava.
— Você deixou todos morrerem, você é uma inútil.
— Cala a boca! Cala a boca! — ela berrava, o som de sua própria voz quase ensurdecendo em seus ouvidos. — Eles morreram, eu sobrevivi, a vida funciona assim!
A insanidade crescia, a linha entre a realidade e a ilus?o se desvanecendo cada vez mais. Ana via rostos familiares nas sombras, pessoas que tinha perdido, pessoas que odiava. Eles sussurravam, zombavam, riam dela, e explos?es de raiva cada vez mais intensas vinham em resposta.
Tudo isso mudou como mágica quando, aos poucos, come?ou a sentir novamente seus membros. Agora havia algo no que focar, e todos os demais pensamentos eram abandonados em tempo real. Primeiro, um formigamento nas pontas dos dedos, depois, uma leve dor nos bra?os e nas pernas. A agonia de cada movimento n?o sumiu, mas o retorno gradual da sensibilidade era um sinal de que seu corpo estava, de alguma forma, come?ando a se recuperar.
Com um esfor?o monumental, conseguiu sentar no ch?o de pedra Seus músculos tremiam com o esfor?o, a dor era excruciante, mas ela se for?ou a manter a postura. Sua rotina prosseguiu assim, sentando-se, o que acabava com a energia de seus bra?os, e em seguida improvisando um alongamento, esticando os músculos em forma??o.
Quando sentiu mais confian?a de que n?o se afogaria, Ana lan?ou-se em dire??o ao rio. A água entrando em seus lábios parecia eliminar lentamente a podrid?o, mas ela se for?ou a se afastar, o atraente líquido n?o faria bem em seu estado atual se tomado em excesso.
No décimo dia após se sentar pela primeira vez, a mercenária se levantou. Seus passos pareciam com os de crian?as, cambaleantes, instáveis e meio desalinhados, mas pareciam a maior das conquistas após tantos dias presa ao ch?o.
— Preciso de um banho…
Recobrando a consciência de si mesma, olhou para suas próprias roupas, trapos imundos que mal a cobriam. Ela as removeu aos poucos, descolando parte por parte da pele assada pela umidade que estava abaixo. Era diferente de antes, mas ela quase ousava dizer que a pele sensível era ainda mais inc?moda do que a dor lacerante.
O corpo esbelto e sem cicatrizes, apesar das muitas feridas que obtivera recentemente, adentrou nas limpas águas. Foi revigorante, era como estar viva de novo. Sentia a sujeira, o sangue seco e o fedor dos últimos dias se dissiparem na água, sendo lavados de seu ser. A corrente fria a envolvia, trazendo uma sensa??o de pureza e renova??o que há muito n?o sentia.
Ana permaneceu ali por um tempo, deixando a água fazer seu trabalho. Seus pensamentos eram um turbilh?o, mas pela primeira vez em dias, uma calma real a alcan?ou, diferente dos descansos for?ados que estava se obrigando a ter. Ao emergir, sentiu-se mais limpa, fisicamente e mentalmente. A dor n?o passava de algo bobo quando comparada ao momento após a queda, ent?o ela decidiu estar bem o suficiente para seguir.
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A garota caminhou nua por um tempo, mas o vento logo causou arrepios em sua pele molhada, for?ando-a a improvisar vestimentas com as poucas partes ainda utilizáveis do tecido. Seus músculos tremiam menos do que antes, e com um agarr?o rápido, pegou a espada negra que repousava serenamente durante seu sofrimento. Em sua outra m?o a coroa repousava. Ela havia refletido muito se era útil levá-la ou n?o, mas por fim decidiu que n?o tinha motivos válidos para abandonar a pe?a.
Seu olhar vagou ao redor, tentando decidir para onde ir. Cada dire??o parecia igual, uma vastid?o negra sem fim. Ent?o, com um suspiro, ela girou no lugar, fechando os olhos e escolhendo um caminho ao acaso.
— N?o importa para onde, desde que eu me mova — resmungou para si mesma, e com passos vacilantes, come?ou a caminhar. Um último olhar foi lan?ado para a po?a de sangue seco onde repousava em frangalhos. — Eu venci, ch?o filho da puta. N?o vou morrer aqui.
E assim, seguiu sem rumo, com o tempo perdendo seu significado na escurid?o infinita.
Horas se passaram, quando de repente Ana sentiu um movimento ao seu redor. No início, pensou que as vozes tivessem voltado. A sensa??o de algo espreitando, observando-a, tornou-se cada vez mais intensa. Tentou ignorar, mas o sentimento persistente de que algo estava próximo a deixou alerta, mesmo na escurid?o total.
— Estou ficando louca de novo... — murmurou para si mesma, enquanto dava passos cada vez mais rápidos.
O movimento se intensificou, e com isso Ana parou, tentando sentir de onde o mal pressentimento vinha. Seus ouvidos captaram o som de patas silenciosas movendo-se na escurid?o, mas nada era visto.
— é só minha imagina??o — cantarolou, tentando se convencer, mas seu aperto mais forte na espada escancarou sua crescente preocupa??o.
Ent?o, antes que pudesse reagir, a criatura atacou. Seu salto se assemelhava a um borr?o, e a mercenária apenas teve tempo de cair de costas no ch?o para for?ar um desvio. Com um pouso suave, a pequena silhueta felina parecia surpresa por n?o ter acertado, mas logo voltou a se afastar, saindo da curta área que podia enxergar.
Ana mal teve tempo de erguer a espada para se defender quando o mesmo animal surgiu de uma dire??o totalmente diferente, avan?ando com um impulso em dire??o a seu rosto.
— N?o é particularmente forte… — o impacto fez seus dedos, ainda fracos, doerem, mas a arma permaneceu firme, fazendo-a apenas dar um leve passo para ajustar o equilíbrio.
Sem poder vê-la adequadamente, Ana errava todos os contra-ataques, e a luta se tornava cada vez mais frenética. Ela se debatia, tentando prever de onde o vulto viria em seguida, mas mesmo com seus aprimorados sentidos n?o conseguia detectar o felino, ela n?o estava acostumada a depender apenas deles.
— Maldi??o! — gritou, ofegante, enquanto sentia as finas garras rasgarem sua pele. A dor era intensa, mas a adrenalina a manteve em movimento. — Vamos Ana, n?o é nada comparado a tudo que você já enfrentou. Foco!
Em um gesto bobo em meio ao desespero, ela deu um forte peteleco em sua testa. Sua mente nublada clareou-se um pouco, e com um suspiro profundo ela parou seus movimentos apressados. Pequenos detalhes que sua falta de aten??o a impediu de notar come?aram a surgir; sempre que a criatura se aproximava, Ana sentia o ar se deslocar e um sussurro baixo surgia em seus ouvidos. O cheiro de pelo molhado também fluía por suas narinas, e uma dire??o aproximada de onde o próximo ataque viria chegou a seu corpo por reflexo.
— Te peguei! — ao invés da espada, seu pé esquerdo voou para frente em um forte chute, enquanto seu corpo se inclinava para trás. Quando pensou que havia se equivocado, seus dedos finalmente entraram em contato com o ser, ainda em meio a seu salto.
Um estalo abafado foi ouvido, pequenos ossos de ambos os lados se partiram, e Ana despencou pressionando o pé com a testa franzida.
— Mas que porra… v?o ficar ainda mais tortos — suas m?os tocaram os pequenos dedos quebrados, mas logo ela se levantou, utilizando a espada como apoio. — Você também n?o teve sorte. Esses estalos foram de algumas costelas, né? — perguntou, sorrindo ao ouvir a respira??o pesada que vinha da escurid?o.
Com um grito de fúria, ela come?ou a correr atrás do som, balan?ando a espada. A perseguida tornou-se a perseguidora, em uma c?mica cena que durou por longos minutos.
O felino mancava, mas corria de forma desesperada do ser bípede louco que estava atrás dele. Vendo que n?o iria longe, ele girou bruscamente para trás, se lan?ando em uma última tentativa desesperada de abater sua ex presa.
Como se já esperasse, Ana dobrou o bra?o com um movimento preciso, cravando a espada na cintura da criatura. Um grito estridente soou pelos arredores antes dele cair, morto, ao lado dela. Acompanhando-o, a garota caiu de joelhos, ofegante e coberta de sangue, tanto seu quanto de seu inimigo.
Gghhnnnrrr
Ana n?o hesitou. Como um animal, ela come?ou a devorar a criatura ali mesmo. Rasgava a carne com os dentes, faminta por algo fresco, o cheiro do sangue novo ati?ando seus sentidos mais íntimos. O gosto era mais amargo do que a última criatura grotesca, mas infinitamente melhor do que a carne em decomposi??o que vinha consumindo nos últimos dias. Ela mastigava e engolia com avidez, até sentir-se plenamente cheia.
Quando terminou, levantou-se devagar, mas revigorada. Lambendo os lábios para limpar o sangue que havia sobrado, ela come?ou a analisar os restos do monstro. Se parecia muito com uma vers?o um pouco menor de um tigre, mas seu pelo misturava um belo cinza com um profundo pelo negro. Suas garras eram longas, mas pareciam frágeis. Era uma criatura elegante, até mesmo bonita, mas havia uma coisa que chamava a aten??o.
— N?o tem olhos — falando sozinha, Ana girou o rosto da criatura com a ponta da espada. Seu olhar encarou pensativamente o cranio sem vida, pouco maior que uma cabe?a humana. As cavidades estavam lá, mas n?o existiam globos oculares, uma bizarrice da evolu??o. Em um movimento repentino, sua m?o dividiu o duro osso ao meio com um limpo corte.
Ana pegou a parte de cima da cabe?a decepada do felino, e com movimentos rápidos e precisos da espada curta, removeu toda a pele restante. Ela o levantou na altura dos olhos, girou-o de um lado para o outro, e com um balan?ar leve de ombros, colocou-o sobre sua cabe?a.
— N?o posso confiar nessa vis?o inútil. Assim ao menos evito de abri-los por reflexo — murmurou, sentindo a textura áspera dos ossos contra sua pele. O mundo já escuro agora desapareceu por completo.
Com os olhos cobertos, Ana come?ou a sentir o mundo ao seu redor de uma maneira diferente. Os sons tornaram-se mais nítidos, cada gotejamento de água e cada sussurro do vento uma pista. O ar tinha uma textura, uma densidade que ela podia quase tocar. Sentia o cheiro da pedra úmida, do musgo crescendo nas paredes, do sangue seco em suas m?os.
Um sorriso confiante e sinistro parecia brilhar logo abaixo do estranho cranio sem olhos. Os detalhes ocultos do mundo revelavam-se a seus outros sentidos, e, agora, um sutil caminho podia ser visto nesse mundo sombrio.
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