Quatro meses se passaram nas profundezas do abismo. Com o tempo, Ana deixou de pensar seriamente nas coisas, passando a viver no automático, como um dos monstros contra os quais lutava. Seus passos eram guiados mais pelo instinto de sobrevivência do que por qualquer decis?o consciente. Cada dia era uma repeti??o do anterior: ca?ar, lutar, comer.
Conforme ela seguia seu caminho, os monstros se tornavam cada vez mais frequentes e a fauna do abismo parecia estar se diversificando. Pequenas árvores murchas surgiam ocasionalmente, criando vultos distorcidos que adicionavam uma camada extra de tens?o ao ambiente já hostil. A vegeta??o parecia deformada, como se desejasse ser t?o aterrorizante quanto a escurid?o que a cercava.
O sono tornou-se um luxo devido aos ataques frequentes. Estava praticamente dormindo de pé enquanto caminhava, vivendo à base de mana para se manter desperta. A exaust?o era um constante companheiro, mas a necessidade de sobreviver a mantinha em movimento.
Ela evitou seguir os rios, pois sabia que mais criaturas permaneciam perto da água. Já fazia dias que n?o via um, e suas roupas estavam encharcadas de sangue seco. O cheiro metálico era constante, impregnado em sua pele e cabelos. A cada respira??o, o aroma acre misturado com o suor a lembrava de sua condi??o precária.
Nunca ficou parada, exceto nas raras ocasi?es em que estava gravemente machucada e se escondia para se recuperar. Mas mesmo nesses momentos, n?o tinha muito tempo para descansar, pois os ataques eram t?o repentinos que muitas vezes o intervalo entre eles era de poucos minutos.
Em meio a essa rotina brutal, Ana come?ou a pensar que estava chegando a algum lugar. A quantidade crescente de monstros e a mudan?a lenta, mas constante, das plantas eram sinais de que ela estava se aproximando de algo. Acreditava que esse era o caminho certo, que havia uma saída ou um objetivo em algum lugar à frente.
— Se estou indo na dire??o certa, por que parece que estou apenas me afundando mais? — reclamou ela, enquanto fendia a espada em mais uma criatura que a atacava.
Em certo momento sua alta recupera??o deixou de acompanhar a destrui??o repetida de sua pele, e seu corpo ficou coberto de cicatrizes novas. A dor constante era algo com que ela havia aprendido a conviver, um lembrete de que ainda estava viva, de que ainda lutava.
As pequenas árvores murchas ficaram mais densas, e a vegeta??o se tornava mais presente, criando uma sensa??o de que estava saindo das profundezas mais sombrias do abismo e entrando em uma nova área. No entanto, o desconhecido trazia uma sensa??o de perigo ao notar os felinos de sempre, os quais carinhosamente apelidou de “petiscos”, sendo substituídos por outros monstros; Lobos de pelo vermelho corriam ao longe, estranhos seres semelhantes a macacos a observavam passar das árvores e morcegos de mais de um metro se recolhiam ao vê-la se aproximar.
Para sua sorte, a grande maioria apenas rosnou antes de se afastar. Ana sup?s que fedia a morte, n?o havendo motivos para buscarem comida podre com tanta diversidade, mas n?o pensou muito no assunto. Ainda assim, a constante vigilancia a deixava exausta, seus sentidos sempre em alerta máximo.
“Se mate…”, a voz suave sussurrou palavras distorcidas e insidiosas.
— Cala a boca.
“Se mate…”
— Mas que porra!
O olhar irritado de Ana pousou na lamina em sua m?o. Seus nós dos dedos ficaram brancos pela tens?o conforme ela apertava o cabo da espada..
— As coisas já est?o difíceis o suficiente com você aumentando, ent?o só cale a merda da boca! — seu rosnado reverberou pelo local, e como se atendendo a seu pedido, o silêncio voltou a reinar.
A espada que ela carregava, sua fiel companheira nas batalhas, mudava dia após dia. As marcas aumentavam incessantemente, e com isso, seu tamanho e peso também cresciam, obrigando Ana a se adaptar a cada luta. Ao chegar no primeiro milhar de marcas de morte, a lamina escura já alcan?ava os noventa e cinco centímetros, sendo diferente do que quando chegou aqui.
Sua elegancia inicial estava sumindo, tornando-se uma arma mais bruta, mas ainda era extremamente bela. Apesar do peso aumentar, ainda era o ideal para ser manuseada com apenas uma m?o, e os milhares de riscos davam um ar misterioso para a arma, como se contassem histórias das batalhas pelas quais passou.
Acompanhando a suposta evolu??o, sussurros come?aram a surgir na mente da mercenária. Inicialmente ela pensou que eram as vozes de sempre, mas o sussurro n?o respondia como seus companheiros das sombras, ent?o descartou a ideia. Depois, notou que a própria espada parecia transmitir uma sensa??o diferente quando os ouvia, ent?o pensou que todas as conversas que teve até agora n?o eram sua imagina??o, mas sim com a arma. No entanto, a voz apenas repetia um perturbador “se mate” incessantemente ao invés das complexas conversas rotineiras, fazendo Ana também deixar essa possibilidade de lado.
— Mas que porcaria de presente, hein, Gabriel.
Para sua sorte, havia uma certa aleatoriedade nos momentos em que a faca “acordava”, ent?o boa parte do dia ela n?o ouvia o pedido de suicídio, mas ainda era irritante.
No final de mais um dia infernal, enquanto descansava, ouviu um som diferente. Um ruído distante, mas constante, como se algo grande estivesse se movendo. Sentiu um arrepio na espinha, mas n?o de medo. Era uma sensa??o de reconhecimento.
— O raspar do solo é diferente… esse n?o é som de rocha ou terra — sussurrou, levantando-se lentamente. — Parece concreto.
Com passos rápidos, seguiu o ruído, os sentidos agu?ados a guiando pela escurid?o. Cada passo era calculado, cada movimento medido. Sentia o cora??o bater mais rápido, a adrenalina correndo por suas veias.
Finalmente, chegou a uma abertura em uma grande rocha. Do outro lado, o som estava mais claro, mais definido. Parecia um eco de algo pesado, algo poderoso.
— Isso é uma constru??o humana! — exclamou a mercenária, levantando um pouco a aba do casco ao notar um leve brilho. A abertura tinha grandes pilares entalhados na pedra, ati?ando sua curiosidade, a fazendo-a caminhar rapidamente em dire??o ao local.
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Dentro da fenda havia um vasto sal?o, iluminado por uma luz fraca que parecia emanar das paredes. Ao fundo uma grande porta se erguia imponentemente, com ricos adornos dourados e grandes espinhos negros, e no centro uma criatura colossal se movia lentamente, seus passos reverberando pelo ch?o de pedra.
Era uma vis?o aterradora, uma fus?o de carne e pedra. Seu tamanho atingia os três metros de altura e suas patas, grossas e poderosas, pareciam talhadas em granito, terminando em garras afiadas que raspavam o ch?o com cada movimento. Seu corpo era uma massa de músculos cobertos por uma pele rugosa e esverdeada com um padr?o semelhante a escamas.
Cinco cabe?as serpenteantes brotavam de locais aleatórios de suas costas, movendo-se independentemente, cada uma com olhos brilhantes que refletiam uma luz sinistra. Uma crista óssea cobria seu dorso, refor?ando a impress?o de uma bizarra mistura do vivo com o inanimado.
Sem aviso, uma das cabe?as serpentinas disparou em sua dire??o, a boca escancarada revelando presas afiadas. Ana tentou desviar, mas a pele dura da criatura ainda esbarrou em seu bra?o direito, deixando um avermelhado e dolorido arranh?o. O vento do movimento brusco fez seus cabelos voarem, mas com um movimento ágil, ela girou a espada, cortando a cabe?a da serpente. Sangue negro jorrou, espalhando-se pelo ch?o e por suas já manchadas roupas. A criatura rugiu, com as outras cabe?as movendo-se freneticamente.
— Tudo sempre é t?o hostil — falou a rainha, retirando o cranio de sua cabe?a com um movimento rápido. — é como se fosse feito para destacar a criatura no meio do abismo. Alguém prendeu ela aqui de propósito.
Depois de meses sem ver nada, seus olhos arderam ferozmente ao serem expostos à luz sutil. Ana piscou repetidamente, sentindo uma dor lancinante que a deixou momentaneamente cega. A sensa??o era de agulhas perfurando seus olhos, e quando finalmente come?ou a distinguir formas, percebeu duas bocas vindo em sua dire??o. O design estranho das cabe?as era fino, feito para que o ar fosse cortado sem resistência, criando um ataque silencioso e fluido, impedindo que Ana tivesse uma rea??o rápida sem usar a vis?o..
Esquivando-se dos ataques, a garota avan?ou desferindo golpes precisos. A espada cortava através da carne e da pedra, mas o impacto causava dores intensas em seus bra?os. Uma das patas gigantes da criatura desceu em um golpe devastador. Ana rolou para o lado, escapando por pouco.
— N?o passa de outro monstro burro. é decepcionante.
Levantando-se com um suspiro resignado, a mercenária disparou novamente em dire??o à criatura, mirando a base das cabe?as. Com um salto, ela cravou a espada em uma das jun??es, cortando tend?es e ossos, fazendo a cabe?a cair ao ch?o com um baque surdo.
A criatura rugiu e se debateu em agonia. Em seus saltos descontrolados, uma das patas traseiras varreu o ar, acertando Ana e jogando-a contra a parede.
“E eu sou ainda mais burra”, pensou, com a dor atravessando seu corpo. Sua vis?o estava turva, mas se for?ou a levantar, avan?ando novamente com passos firmes.
O padr?o de ataque do monstro n?o mudou, as duas cabe?as restantes voltaram a atacar de forma sincronizada, uma de cada lado. Ana piscou algumas vezes, recuperando o foco, e repetiu seu salto para as costas do monstro ao desviar por um triz das rápidas mordidas. Em um movimento levemente desequilibrado, cravou a espada diretamente no pesco?o sangrento da cabe?a que acabou de cortar.
A criatura estremeceu e se debateu ainda mais violentamente que antes, tentando derrubá-la, mas Ana segurou-se com firmeza. Com a outra m?o, come?ou a socar a crista óssea que ficava no topo, criando finas rachaduras que iam lentamente se estendendo, até que por fim se rompeu, expondo órg?os amontoados que se moviam ritmicamente.
“Mate-o…”, nesse instante o sussurro insidioso da lamina negra voltou de forma repentina, mas havia mudado, deixando Ana agradavelmente surpresa.
— Ah, com isso posso concordar, maldita espada — disse lentamente, pegando com a m?o livre o cora??o da besta e puxando-o para sua habitual mordida. Enquanto a garota se perdia em seu próprio mundo ao sentir a energia revitalizando seu corpo, a criatura parou de se mover, despencando inerte para o lado.
Ana caiu junto com o colosso, ofegante e coberta de sangue da cabe?a aos pés. Cada músculo doía, mas a sensa??o de vitória era inebriante. O sal?o caiu no silêncio, a luz fraca ainda dan?ando nas paredes.
— Agora n?o tem mais conserto — murmurou para si mesma, arrancando as roupas penduradas em seu corpo, já imundas e rasgadas em diversos pontos. Em seguida seus olhos foram para a espada, também coberta do espesso líquido negro, e sentiu uma raiva sem motivo, a deixando cair no ch?o sem muito cuidado.
Seu corpo nu perdia aos poucos o aquecimento gerado pela batalha, e com isso a fria camara trouxe um leve arrepio. Com passos relaxados, Ana se aproximou da grande porta, sentindo cada detalhe sob seus dedos enquanto refletia sobre o próximo passo.
— Parece pesada…
Suas palavras acompanharam suas m?os, que encaixavam-se entre os grandes espinhos. Seus pés se ajustaram no ch?o com um firme deslize e seus músculos tencionaram-se por completo, fazendo seu corpo magro parecer crescer bruscamente de tamanho.
Por um instante, pareceu que o tempo parou, com a pequena garota empurrando a imóvel porta, mas de repente uma nuvem de poeira se espalhou pelo local, com a maci?a constru??o come?ando a se mover.
As juntas metálicas rangeram, ecoando pelo sal?o enquanto se abriam lentamente. Ana apertou os dentes, seus músculos queimando pelo esfor?o, mas ela persistiu até que a abertura fosse suficiente para que passasse.
Do outro lado, a luz aumentava gradualmente, revelando um corredor vasto e vazio. Pegando de volta a espada e o cranio que já se acostumara a usar, ela seguiu o caminho, seus passos no piso “moderno” criando um som ritmado que a acalmava.
Ao fim da passagem, encontrou um pequeno e estranho arco, mas onde a porta devia estar, uma espessa fuma?a negra circulava.
— é bizarro… como a fuma?a n?o se espalha? — disse a mercenária, tocando com a espada para tentar entender o que era o estranho fen?meno.
Vendo que nada ocorreu, encostou a ponta do dedo, o qual também atravessou sem problemas. Com um suspiro, ela decidiu entrar de uma vez.
Enquanto atravessava a neblina, por um breve momento, o mundo ao seu redor pareceu hesitar, como se tudo se estagnasse. Havia uma pausa estranha, um lapso de transi??o que quase fez Ana perder o equilíbrio, mas logo a sensa??o passou, e a nova vis?o se abriu diante dela.
Ela estava na lateral de uma montanha, como se todo esse tempo estivesse dentro de um espa?o confinado. A vis?o era surpreendente. à sua frente, uma vasta planície se estendia até onde seus olhos podiam ver. Apesar de ainda estar no subterraneo, o ambiente era diferente do abismo que conhecia, ainda escuro, mas como se estivesse sobre a fria luz do luar. No horizonte, pequenos pontos luminosos brilhavam, indicando a possível existência de uma grande cidade.
— Ent?o há um abismo além do abismo... — murmurou, sentindo uma mistura de descren?a e curiosidade. Observando mais atentamente, viu uma estrada sinuosa que descia pela montanha, levando até a planície.
Ao longe, um grupo de caravanas se movia lentamente pela estrada. Era difícil distinguir detalhes, mas Ana podia ver as formas vagas de carruagens e figuras se movendo ao redor. Seu cora??o bateu mais rápido ao pensar na possibilidade de encontrar outros seres humanos ou criaturas inteligentes.
— Talvez eles saibam onde estou... ou como sair daqui — pensou em voz alta, já decidida. — Parece que n?o vou mais precisar de você, meu amigo.
O macabro capacete felino que a acompanhou foi posto em frente à porta com carinho, um marco de sua sobrevivência e uma despedida da escurid?o absoluta. Com uma última olhada para a cidade distante, Ana come?ou a descer a montanha.
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