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Capítulo 44 - Coleção

  — Eu já cansei de ver pedras — reclamou Júlia, sua voz propositalmente infantil tirou alguns sorrisos suaves dos outros.

  A caverna era uma repeti??o incessante de estalactites e estalagmites, uma vis?o que n?o parecia ter fim mesmo após horas caminhando. Em certo ponto, ramifica??es come?aram a aparecer a cada poucos quil?metros, tornando a estrutura um labirinto natural.

  O ritmo da viagem era lento, cada passo uma luta. Felipe, agora sem uma perna, se apoiava nas garotas, que se revezavam para ajudá-lo a continuar. O ar estava frio e úmido, e as plantas luminosas estavam cada vez mais escassas, mal iluminando o caminho à frente.

  Os irm?os foram recuperando a cor de suas faces ao longo da caminhada. O fortalecimento da mana em seus corpos fez com que sua taxa de regenera??o fosse anormalmente alta. N?o podia ser dito que estavam bem, mas um humano comum da terra pré Grande Vazio n?o teria resistido a ferimentos t?o intensos se ocorressem em um período t?o curto de tempo. Apesar disso, a esperan?a n?o crescia, todos sentiam que aquelas paredes cinzentas seriam a última coisa que veriam.

  — Mas que boca, hein? Você deveria parar de reclamar de ver pedras e come?ar a reclamar de n?o ver uma saída — disse Felipe, meio em tom de brincadeira, meio de mau humor, apontando para um estranho sulco na parede que se diferenciava de todo o restante.

  Algumas inscri??es indecifráveis adornavam uma estranha gaveta, e, acima delas, meio cranio estava desenhado.

  — Isso aqui é uma tumba — murmurou Ana, correndo os dedos pelos padr?es intrincados que pareciam contar uma história esquecida pelo tempo.

  — Que lugar estranho para enterrar alguém — murmurou Alex em um comentário baixo, após um longo período em silêncio. Seus olhos estavam meio apagados pelo cansa?o, e voltou a caminhar de forma arrastada após o interesse momentaneo no achado.

  Conforme avan?avam, os mesmos sulcos voltaram a surgir, cada vez com mais frequência, assim como os sinais de vida. Ou melhor, os sinais de n?o-vida. Mortos-vivos aproximavam-se ocasionalmente com seus passos lentos, cada vez mais aterrorizantes. A carne já apodrecida quase se desprendia de seus corpos, mas n?o passavam de uma falsa amea?a.

  — Por que eles n?o te atacam? — perguntou Júlia, observando um zumbi se afastar de sua líder, sem a comum tentativa de mordida.

  — N?o sei — respondeu Ana, dando de ombros. — Mas n?o vamos questionar nossa sorte agora.

  A princípio todos acharam estranho, mas logo se acostumaram com a estratégia de Ana segurar seus oponentes enquanto alguém os finalizava. De maneira inesperada, os mortos-vivos recuavam diante da garota, como se impedidos de se aproximar. Isso facilitou a jornada, mas também aumentou a curiosidade e a inquieta??o do grupo.

  — é um pouco frustrante, a mana deles é t?o rala que n?o sinto nenhum progresso quando a absorvo — a ruiva torcia a boca ao esmagar mais um dos caminhantes que se aproximava.

  “Entendo seu sentimento”, pensou Ana, rindo para si mesma ao notar que sua espada também n?o conseguiu uma nova marca ao perfurar o cranio de um homem desfigurado que se aproximava.

  De repente, após uma curva especialmente estreita, o local se expandiu para todos os lados, retirando um pouco da sensa??o sufocante que os assolou desde que entraram na caverna. A grande camara tinha paredes estranhamente lisas, como se fossem esculpidas artificialmente, reluzindo perante a luz fraca dos arredores, que também refletia nos minerais incrustados na rocha, criando um brilho etéreo.

  No centro, uma constru??o de pedra se erguia majestosamente, coberta de símbolos antigos que emanavam um brilho sinistro. Manchas de sangue cobriam a pedra escura, e apesar de estarem claramente secas, pareciam frescas. O altar estava cercado por um escuro abismo, t?o profundo que n?o se podia sequer imaginar até onde levava. Apenas um estreito caminho de pedra levava a ele, continuando logo após para o outro lado da camara. O som do vento ecoava suavemente, aumentando a sensa??o de mistério e perigo.

  — Parece um tipo de altar de sacrifícios — falou Ana, franzindo a testa. — Mas o que est?o sacrificando?

  — Eu n?o quero saber — disse Júlia, com a voz trêmula. — Vamos só sair daqui.

  — Bom, n?o temos muita escolha, precisamos atravessar para o outro lado — disse Ana, apontando para o caminho que se estendia além do altar.

  Eles come?aram a se mover, tentando ignorar a constru??o sinistra. O ar parecia mais denso ali, como se a camara estivesse impregnada com uma presen?a maligna. Cada passo ecoava pelo espa?o, amplificando a sensa??o de vulnerabilidade. O abismo ao redor atraia a aten??o dos jovens, mas seus olhares pareciam ser absorvidos pela escurid?o infinita.

  Durante o cauteloso avan?o, Ana foi a primeira a notar alguém abaixado, encostado no altar, como se estivesse pegando algo, mas a distancia n?o permitia que identificasse o que era o estranho objeto. Seus passos tornaram-se mais lentos e silenciosos, gesticulando para que os outros fizessem o mesmo. Conforme se aproximavam, a luz fraca revelou o rosto da figura.

  — Natalya? — Ana perguntou, parando abruptamente com uma clara surpresa em seus olhos.

  — O que est?o fazendo aqui? — a Colecionadora ergueu o olhar, igualmente surpresa ao ver Ana e seu grupo.

  — Nossa miss?o da igreja acabou com certos imprevistos… resumindo tudo, acabamos entrando nessa caverna por acid…

  Antes que pudesse terminar, Natalya se levantou e, sem aviso, desferiu um soco em dire??o ao peito da garota.

  — O que você está fazendo? — gritou Ana, desviando por um triz, uma a??o de puro reflexo.

  — N?o entenda errado, n?o tenho nada contra você, mas n?o posso deixar que conte sobre o que viu aqui — disse a exilada, sua voz fria e determinada, mas ao mesmo tempo com um sorriso come?ando a se formar. — Além disso, n?o vou ter outra oportunidade t?o boa quanto essa de pegar a sua f… a sua “arma” para a minha cole??o sem ser considerada uma traidora pelos mercenários por matar uma das famosas rainhas — seus olhos tornaram-se ainda mais gananciosos ao notar que a faca havia crescido ainda mais, metamorfoseando-se em uma curta espada.

  Sem mais explica??es, ela avan?ou com uma série de golpes de boxe, seus bra?os robóticos dando-lhe uma velocidade e for?a incríveis. Os socos eram rápidos e precisos, visando pontos vitais com uma destreza impressionante.

  “Mas que filha da puta”, Ana esquivava-se continuamente, tentando retalhar com sua espada, mas sua vis?o n?o conseguia acompanhar adequadamente a velocidade dos ataques, impedindo até mesmo de formular pensamentos além de xingamentos brutos.

  Os socos ocasionalmente a acertavam, trazendo uma dor excruciante e, por vezes, arrancando peda?os de sua carne devido às pequenas arestas afiadas das próteses que incessantemente vinham em sua dire??o.

  Júlia, vendo a luta, correu para ajudar. Com um movimento fluido, deixando claro o esfor?o colocado em seu treinamento, ela balan?ou o martelo, todos os seus músculos foram contorcendo-se para embutir uma for?a tremenda em dire??o à nova inimiga, mas n?o foi o suficiente para danificar os temperados bra?os metálicos.

  — Maldita! — a ca?adora ruiva gritou, desesperada, antes de ser atingida por um poderoso soco no est?mago que a levantou do ch?o. Seu corpo pareceu flutuar por alguns segundos, como se a própria gravidade estivesse a ignorando, mas antes que percebesse chegou ao solo com um pesado baque, vomitando sangue e restos de comida enquanto se encolhia de dor.

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  Alex se aproximou nesse instante, ainda cambaleando um pouco, mas mantendo uma postura firme. Aproveitando a brecha criada pela sua amante e vendo Ana também iniciar seu ataque, o garoto desferiu um golpe de suas manoplas em dire??o ao rosto da Colecionadora. Desviando por milímetros dos ataques simultaneos dos dois membros do grupo, a mulher girou seu esbelto corpo, formando um poderoso chute em dire??o ao peito do jovem ca?ador.

  — Felipe, agora! — apesar do som agonizante de suas costelas se partindo, Alex usou toda a for?a que restava e tudo que aprendeu de vajramushti com os monges no último ano. Com um preciso passo de recuo no instante em que foi atingido, ele segurou firmemente a perna de Natalya.

  Felipe, havia lentamente se arrastado para perto durante a luta, e sua prótese brilhava intensamente pelo acúmulo de energia. Com um impulso de sua única perna restante e uma complexa express?o de dor, ele se lan?ou em uma tentativa desesperada de agarrar Natalya. Ela, no entanto, ignorou sua perna presa e pegou Felipe no ar.

  — Eu já te disse que com essa porcaria você nunca vai conseguir nada — sussurrou ela no ouvido do garoto da prótese. — Se você quer ser uma máquina, essa máquina também precisa ser você.

  Com um frio sorriso no rosto, Natalya agarrou o bra?o restante de Felipe. Ela p?de ver as lágrimas suplicantes que surgiam em seu rosto, mas a for?a de seu aperto n?o diminuiu enquanto ela rasgava o corpo do jovem, removendo impiedosamente seu membro a partir do osso que se ligava diretamente à omoplata.

  Felipe caiu de suas m?os como uma marionete. Todos puderam ver seus olhos se reviraram sem um único grito enquanto perdia a consciência, sua existência resumindo-se apenas a um corpo amolecido no ch?o.

  Alex, já esgotado, caiu de joelhos, perdendo a for?a em seus bra?os devido ao choque. A mulher n?o o atingiu mais, deixando-o se aproximar de seu irm?o. Seus olhos ferviam de ressentimento, passando de Felipe para Júlia, e depois novamente para as costas da inimiga robótica.

  Nestes poucos segundos, Ana se aproximou novamente, girando para tentar um golpe lateral com a espada. Natalya bloqueou com a parte de trás de sua m?o esquerda, como se afastando uma mosca, mas a for?a resultante do movimento empurrou a jovem mercenária para trás. O impacto quase fez Ana perder o equilíbrio, mas ela se manteve firme.

  — Por que está fazendo isso? — gritou, tentando ganhar tempo enquanto milhares de novas estratégias passavam pela sua mente, mas a esperan?a de sobreviver parecia cada vez mais distante.

  — Eu sempre fico com o melhor prêmio. Esse é o direito dos fortes.

  “N?o parece ser toda a verdade”, notou Ana, olhando profundamente nos olhos da psicopata a sua frente.

  Com o fim da curta frase, Natalya lan?ou um jab direto, mirando o rosto de sua oponente. O som do ar sendo empurrado chegou antes do soco, e em um movimento estranhamente belo, a mercenária saltou lateralmente, usando o próprio punho que ia em sua dire??o como ponto de apoio. Enquanto seu rosto passava ao lado do rosto de Natalya, a rainha mercenária p?de ver de forma mais ampla o caótico cenário que estava oculto pela barreira de ataques.

  A postura de Alex, antes t?o imponente, parecia minúscula enquanto ele chorava desesperadamente sobre o corpo de seu irm?o. O sangue formava uma po?a cada vez maior ao redor dos dois, mesmo com as tentativas contínuas de estancar a ferida com trapos rasgados de sua própria roupa. Júlia, ao seu lado, tentava erguer-se com pernas trêmulas, mas seu corpo curvado deixava claro que os danos internos n?o eram pequenos.

  “Eu devia ter simplesmente virado uma cientista, n?o sobrevivi a tudo isso apenas para morrer nas m?os dessa lunática”, pousando atrás da Colecionadora, pensamentos pouco importantes come?aram a surgir na mente.

  Sua vis?o vagou por cada canto da estranha camara. O ar frio entrava em seu pulm?o, trazendo uma sensa??o estranhamente revigorante. O gosto de ferro do sangue em sua boca n?o era t?o ruim, e o altar sombrio em conjunto com o ambiente brilhante e fantasioso a deu a sensa??o de estar em um filme.

  Como se para a despertar, Natalya se aproximou novamente, o punho vindo a uma velocidade alarmante em um perfeito gancho de direita.

  “Ironia divina, né?”, sorriu, pensando na agitada vida que teve após os mil anos sozinha. “é realmente um nome perfeito”.

  Ana viu a massa de ferro que se aproximava de seu rosto com o canto dos olhos, e,com um pequeno passo para trás, deslizou pela beirada do penhasco, caindo em dire??o ao abismo. Seu rosto sereno transformou a cena em algo belo, uma a??o quase sacrificial, contrastando fortemente com seu dedo médio estendido para frente em uma clara zombaria.

  O ato inesperado pegou Natalya de surpresa. Com um leve desequilíbrio ao parar o pesado golpe que estava dando em meio ao ar, ela tentou segurar a elegante espada negra em um movimento urgente, mas foi parada por Júlia, que com um último esfor?o, saltou sobre ela, impedindo-a de tocar a arma.

  — Você é realmente persistente — sibilou Natalya, seus olhos brilhando com desgosto.

  Um golpe sem emo??o atravessou o peito de Júlia. O brilhante punho metálico surgiu das costas da ca?adora ruiva, e o vibrante sangue escarlate pingando acompanhava o som de um último gemido abafado. Seus olhos perderam o brilho rapidamente, e seu corpo, já sem vida, atingiu o altar ao ser lan?ado de forma descuidada.

  A última coisa que Ana viu foi Alex se jogando em dire??o a Colecionadora, gritando com fúria enquanto lágrimas de sangue escorriam por suas bochechas.

  A sensa??o de queda parecia interminável, o vento rugindo em seus ouvidos suprimia todos os outros sons. Seu corpo girou no vazio, e por um momento, tudo parecia suspenso no tempo. O choque das perdas, a adrenalina da luta, o desespero dos últimos dias de caminhada incessante. Tudo se distanciou, criando uma estranha serenidade em meio ao caos.

  “Adeus, mundo”, pensou a rainha mercenária, fechando seus olhos enquanto come?ava a cantarolar em um baixo murmúrio, aceitando a escurid?o que a abra?ava por todos os lados.

  Natalya suspirou profundamente, observando os corpos inconscientes ou mortos ao seu redor. O silêncio da caverna era interrompido apenas pelo som suave de respira??es irregulares e o eco distante de gotas d'água caindo. Seu olhar repousou sobre as bolsas do grupo, que estavam jogadas em um canto da caverna. Com alguns passos, ela se aproximou, a luz fraca refletia nos símbolos antigos do altar quando come?ou a vasculhar os itens.

  “saia… é hora de ir… saia… há mais insetos para serem ca?ados…”

  Ela encontrou uma faca pequena, alguns frascos de remédios e uma agulha presa a uma linha de sutura. Nada parecia valer a pena até que suas m?os tocaram um livro desgastado. A capa era simples e as bordas estavam esfoladas pelo uso frequente. Curiosa, a Colecionadora o abriu com certo desdém, pronta para descartá-lo como o restante do conteúdo da bolsa. Mas conforme lia, seus olhos se arregalaram de surpresa.

  “saia… saia… é hora de ir…”

  — Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! — Natalya apertou as têmporas com as duas m?os enquanto gritava insanamente com si mesma. Marcas ficaram em seu rosto pelo repentino aperto, mas como se nunca tivessem existido, as vozes em sua cabe?a fizeram uma pausa.

  Ela rapidamente retirou seus rotineiros óculos escuros de lente redonda do bolso e os colocou. A luz azulada da interface holográfica refletia nas paredes do local, criando sombras dan?antes que aumentavam a beleza sinistra do que estava ao seu redor.

  — Abrir cole??o — sussurrou a exilada, fazendo uma extensa lista surgir em sua vis?o. — Mostre-me minha biblioteca.

  Como se ouvindo as ordens de um líder severo, a tela mudou de imediato, mostrando livros detalhados sobre diversos assuntos, desde medicina avan?ada até filosofia antiga, todos transbordando de um conhecimento em um nível n?o visto em escritos normais. A tinta n?o estava desgastada, e muitas das passagens estavam incompletas ou retratavam acontecimentos recentes, deixando claro que era um livro de anota??es que ainda estava sendo utilizado.

  — Compare-o com os demais — ordenou, sua voz ecoando no lugar vazio. Um scanner come?ou a analisar o livro em suas m?os, linhas de luz passando pelas páginas lentamente.

  “A compatibilidade é de 100%”, disse uma voz suave, mas pouco natural, acompanhada por uma mensagem flutuante e pelo som agudo do scanner terminando seu servi?o.

  — Achei mais um… Quem é você, Ana? — murmurou, a curiosidade misturada com um inesperado respeito. Ela relembrou os momentos fugazes de sua luta, tanto a atual quanto o curto período enfrentando a sombra em Kurt, o estilo único de combate e o intrigante olhar que Ana demonstrara passaram pela sua mente. Havia algo mais nela, algo que Natalya n?o compreendia completamente.

  A Colecionadora afastou a lembran?a momentaneamente, voltando sua aten??o novamente para o livro em suas m?os. Ela poderia sentir o peso do conhecimento apenas o segurando, e a identidade da autora misteriosa de grande parte dos escritos que coletou ao longo dos últimos anos come?ou a se formar.

  — Espero que sobreviva — disse ela, um sorriso renovado se formando em seus lábios. — Você vai fazer parte da minha cole??o.

  Um último olhar foi direcionado ao abismo enquanto guardava o precioso livro na bolsa, sentindo a excita??o de adicionar mais um tesouro inestimável à sua cole??o. A caverna voltou ao silêncio, um cenário calmo que abrigava memórias de um campo de batalha marcado pela luta e pela coragem desesperada de pequenos brinquedos dos céus.

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